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Um Só Mundo

Numa Escola inclusiva/ democrática, um espaço de partilha, aprendizagem e reflexão.

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Os Pais Também se Educam?

Como é ser-se filho?

Pode-se trocar de papel e ensinar os pais?

Reunimos cinco testemunhos de diferentes idades para mostrar que quem educa não está sempre certo. No fim, uma terapeuta comenta.

 

 

Os pais também se educam?

 

 

 

Nem sempre é fácil os filhos lidarem com os pais, ou vice-versa. Apesar das boas intenções de parte a parte, este é um terreno pantanoso. Seja porque aos 15 anos o adolescente sente-se controlado e tenta contrariar todas as ordens que recebe, seja porque só mais tarde na vida é que pai e mãe ficam libertos dessa responsabilidade e passam a ser amigos das pessoas que trouxeram ao mundo.

Se é certo que as dinâmicas familiares entre quem educa e quem é educado se alteram ao longo do tempo, também se pode afirmar que os pais, ao contrário de um cliente num restaurante, não têm sempre razão. Posto isto, será que os pais precisam de ouvir mais os filhos, de os tentar compreender e até de aceitar que, às vezes, eles é que estão certos?

 

 

Em busca de uma resposta, falámos com filhos de diferentes idades, dos 16 aos 72 anos, para que descrevessem como são (ou foram) as relações com os respetivos pais, os seus desafios e mais-valias. Em suma, para saber se os pais também se educam. No fim dos testemunhos, uma mediadora familiar ajuda-nos a fazer uma leitura da questão.

 

Inês Fernandes, 16 anos, estudante

 

“Não me posso queixar muito dos meus pais. São muito compreensivos comigo e com o meu irmão [de 20 anos]. Dá sempre para falar com eles, mesmo que eu não esteja certa. Oiço muitos sermões, mas sinto-me à vontade para falar com eles [mãe e pai]. Não tenho medo de lhes dizer nada. Eles também sempre foram assim com o meu irmão. Mas notava que, quando eu era mais pequena e ele era adolescente, ele levava com mais sermões, não sei se por ser o filho mais velho, se por ter mais responsabilidade — os meus pais tiveram de aprender com ele primeiro. Não me lembro, pelo menos, de ver meu irmão de castigo. Eu é que fiquei de castigo algumas vezes, mas ele também sempre foi mais responsável ou, então, escondia melhor as asneiras.

Vejo que as minhas amigas, que não costumam ter tanto à vontade com os pais [masculinos], têm uma tendência maior para esconder as coisas. Vejo vários pais de amigas minhas que não se sentem à vontade para falar com elas. Mas também tenho amigas em que nem o pai nem a mãe são compreensivos. Fecham-nas muito. Cortam-lhe as asas — quanto mais eles insistem no facto de elas não poderem fazer certas coisas, e quanto mais limites colocam, mais elas acabam por fazer coisas para os desafiar, o que cria mais confusões.”

 

Maria, 28 anos, estudante

 

“A minha relação com os meus pais evoluiu imenso. Em pequena a minha mãe era a vilã, o meu pai o herói. Vinte anos depois o papel inverteu-se. Falando no geral, dou-me bem com os dois, mas não tenho com nenhum uma relação perfeita (se é que isso existe). Eu e a minha mãe discutimos imenso. Somos pessoas muito diferentes (ou muito iguais, quem sabe!) e gostamos das coisas de forma diferente. O que é normal. Em pequena a minha mãe era a chata. ‘Leva o casaco. Põe o gorro. Vai pôr a mesa. Já fizeste os trabalhos de casa?’. O meu pai era o companheiro de brincadeiras, de passeios, aquele que dizia: “Deixa lá a miúda em paz, se ela tiver frio veste o casaco.” Com o tempo, fui percebendo que o meu pai não era assim tão perfeito. Pelo contrário. Com isso, aprendi a valorizar mais a minha mãe.

Quando quis mudar de curso, foi com ela que falei. Sempre que tive um problema mais sério, foi sempre à minha mãe que recorri. Por outro lado, ela tem uma necessidade enorme de ser a minha confidente e quer que eu seja a dela, o que para mim é impensável. Mãe é mãe. Uma amiga é uma amiga. Eu tenho as minhas, ela tem as dela. Como é normal, há coisas da minha vida pessoal que não lhe dizem respeito. E vice-versa.

Os pais transmitem-nos valores, educam-nos e é normal que absorvamos alguns gostos e manias deles, mas somos seres diferentes e, por vezes, torna-se complicado fazer com que eles entendam isso. Que já não temos cinco ou oito anos. Ou mesmo 18. Que sabemos o que queremos para nós (ou achamos que sabemos) e isso não tem de ser necessariamente o que eles querem para nós. Temos direito a fazer as nossas escolhas, sejam elas certas ou erradas. Os filhos, tal como os pais, têm o direito a errar.”

 

 

João Barbosa, 45 anos, jornalista

 

“Os meus pais eram pessoas muito diferentes, o que não é nem vantagem nem desvantagem. Penso que, sinceramente, o meu pai nunca se apercebeu bem do seu egoísmo e tirania. Mas era um homem muito honesto em termos de dinheiro, de dar a palavra com honra, amigo do amigo. Um tipo espetacular. A minha mãe era meiga, terna, doce, mas mais castradora.

Até morrer, o meu pai mandou em toda a gente, incluindo nas funcionárias do apoio domiciliário e no resto da família ou amigos. Só eu o punha na ordem. Só eu tinha autoridade. Só a mim obedecia. O meu pai faleceu em fevereiro passado e orgulho-me de lhe ter dado um enorme presente. Sentei-me junto à cabeceira e disse-lhe: O pai não foi bom pai e não foi um bom marido. Mas foi e é um amigo bestial com quem se pode contar para tudo. O meu pai fez um sorriso lindo, como há muitos anos não lhe via. Esse calor irá sempre ligar-nos.

Penso que as relações entre pais e filhos (tenho um que é do relacionamento anterior da minha mulher) têm de ser de verdade, tendo em conta a memória, o entendimento, a idade e a inteligência. Quando dizemos ‘não’ é ‘não’, mas explicamos porque é que é ‘não’. Tentamos dar o exemplo. Ir ao McDonalds, por exemplo: ele comia sempre a sopa e os nuggets e eu comia apenas os nuggets. Um dia perguntou-me porque é que eu não comia sopa e porque é que ele tinha de comer. Dei-lhe razão e passámos os dois a comer sopa.”

 

Helena Carmo, 52 anos, técnica de reinserção social

 

“A relação com a minha mãe era muito tensa na adolescência. Vistas as coisas, e eu não fazia nada de extraordinário, ela era muito conservadora. Controlava muito a minha vida fora de casa e fazia isso não só com perguntas, mas vasculhando as minhas coisas. Impunha muito as questões da aparência, dizia-me que não podia usar as calças assim ou ter aquele corte de cabelo. Ela impedia muito a minha sexualização, a forma como me apresentava. Nunca fiz isso à minha filha.

As coisas mudaram muito quando fui mãe, com 30 anos. Ela foi mãe aos 18 e quando foi avó tinha a idade que eu tenho agora [52 anos]. Ela sempre disse que tinha (e tem) um casamento muito feliz, mas fazia muita questão em que eu só me casasse depois do curso — ela casou e não estudou, não teve coragem de voltar estudar, e queria uma história diferente para mim. Hoje tenho uma relação muito forte com a minha mãe. Antes, ela não era propriamente minha amiga. Hoje é menos mãe e já somos iguais. Há muitas coisas em que ela me pede conselhos. Há uma proximidade muito maior, até ao nível dos afetos.

A relação com o pai sempre foi muito tranquila, sempre foi de conversar sobre as coisas e sobre a vida. Sobre livros e cinema. Com o meu pai sempre foi uma relação mais de igual para igual, muito aberta. Sempre me responsabilizou muito. Vim a saber, mais tarde, que os dois discutiam muito sobre a educação que a minha mãe me dava — discutiam às escondidas. A relação com o meu pai foi mais fácil sobretudo na adolescência. E foi paritária ao longo dos anos. Com a minha mãe foi muito mais de ciclos.”

 

Maria Filomena Mónica, 72 anos, socióloga e historiadora

 

“A minha relação com os meus pais variou muito ao longo do tempo. Na infância, fui imensamente feliz: sendo a filha mais velha, era adorada pela minha mãe e, embora isso fosse menos claro, pelo meu pai. Tudo mudou com a adolescência, quando lutei por ser independente e a minha mãe teve medo que eu tomasse a rédea nos dentes. Ao proibir-me tantas coisas, acabei por me revoltar: não me suicidei por um triz. No entanto, a luta contra a minha mãe acabou por me enriquecer o caráter. A partir dos 19 anos, quando fui internada num colégio em Londres – de onde viria a ser expulsa, após o que aluguei um quarto — percebi que nada nem ninguém me conseguiria vergar. Se ela não me transmitiu a religião católica, a minha mãe deu-me a noção exata dos meus deveres. Gostaria que a minha mãe tivesse confiado mais em mim.

O papel dos meus pais foi muito importante até aos 20 anos. Depois, e durante décadas, quase desapareceram. No final da vida dos meus pais, aproximei-me deles, até porque, na doença que atacou a minha mãe (Alzheimer), ela precisou de mim. Senti que era meu dever ampará-la até ao fim. (…) O meu pai era temperamentalmente diferente da minha mãe. Dominadora como esta era, os filhos poucas oportunidades tiveram de o conhecer, o que hoje lamento. Gostava de ter tido conversas a sós com ele, o que só sucedeu uma vez na vida: quando ele me foi visitar a Londres em 1962. (…) Ambos já morreram e com o tempo as feridas saram. Hoje, relembro sobretudo as qualidades da minha mãe, tão grandes quanto os seus defeitos. Ao ler há dias algumas cartas que o meu pai me escreveu quando eu estava em Oxford nos anos 1970 fiquei admirada com a doçura do seu tom.”

 

“Pais e filhos estão em permanente aprendizagem”

 

Apesar das diferenças de idades, todos os testemunhos apresentam pontos em comum e colocam a tónica na importância da comunicação. Os problemas que moldam a relação entre pais e filhos não são, por ventura, suficientes para quebrar os laços que, segundo a mediadora familiar Margarida Vieitez, são praticamente elásticos e eternos. Vieitez chega ao ponto de dizer que não existem más relações entre pais e filhos, antes uma dificuldade em se encontrarem, “porque estão tão centrados em si próprios, e na sua razão, que não conseguem ver para além disso”. O segredo, diz, está no “crescimento conjunto” de ambos.

Pais e filhos estão em permanente aprendizagem. Todos estamos”, acrescenta a também terapeuta, não sem antes sublinhar a importância da escuta ativa. Porque é fundamental que os pais oiçam os filhos e, consoante as idades, sejam eles (ou não) a tomar as decisões. Por isso, e para responder à pergunta formulada no título: sim, os pais também se educam.

 

Artigo de Ana Cristina Marques no Observador , em 22 de novembro de 2015

 

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